Advogado de Família

A utilização de gravações áudio e vídeo nos processos judiciais (de família)

A utilização de gravações áudio e vídeo nos processos judiciais (de família)

É sabido que muitos dos factos que se discutem nos processos judiciais da jurisdição da família e dos menores ocorre à porta fechada. E que são apenas presenciados pelos intervenientes. Por este motivo, muitas vezes poderão as partes procurar recorrer à gravação de conversas telefónicas ou presenciais como forma de procurar produzir prova em tribunal. São, na verdade, comuns os casos em que as partem tentam utilizar em tribunal vídeos que realizaram com o telemóvel ou conversas que gravaram e cujo conteúdo entendem que é relevante. Os problemas surgem quando as gravações produzidas em juízo sejam obtidas sem o consentimento ou sequer o conhecimento dos visados, algo que tem vindo a ocorrer com particular intensidade em sede de Direito da família dada a especial conflituosidade e dificuldade probatória geralmente associada a matérias conjugais e relativas a crianças e jovens.

Esta crescente tendência para a proliferação do recurso a gravações áudio e vídeo não consentidas em sede de processos de família suscita particulares questões sobre se tais meios probatórios se mostram ilícitos e inadmissíveis em processo civil, por colocarem em causa direitos constitucionalmente protegidos da contraparte, ou se, pelo contrário, poderão em certos casos vir a ser valorados pelo tribunal para decisão do mérito da causa.

 

Da ilicitude da prova por gravações não consentidas

 

Como prelúdio ao tratamento subsequente da presente temática, cumpre claramente destrinçar alguns termos e conceitos que se mostram próximos, mas que não se confundem, de modo algum entre si.

Nem todos os meios de prova, ainda que materialmente aptos a motivar a convicção da entidade decisora acerca da ocorrência dos factos relevantes, poderão ser considerados pelo juiz na fixação da matéria de facto tida como provada para efeitos de verdade processual, existindo amplos casos de proibição de valoração de meios probatórios, isto é, casos em que o decisor não poderá tomar em consideração determinado meio de prova na formação da sua convicção sobre a verdade material jurisdicionalmente relevante.

 A proibição de valoração de um meio de prova decorre, em regra, da inadmissibilidade ou ilicitude de um meio de prova. A inadmissibilidade de um meio de prova resulta de um vício processual de que padece o meio de prova, caso em que o meio probatório não se mostra ilícito em si mesmo, mas legislação processual não permite que este seja submetido perante o juiz. Por sua vez, a prova proibida ou ilícita é aquela que é ilícita em si, por incidir sobre temas proibidos ou a sua obtenção ou a própria produção em juízo implicar um ato materialmente ilícito.  Ainda que a proibição de valoração da prova decorra, em regra, da inadmissibilidade ou ilicitude da prova, a ilicitude do meio de prova não tem necessariamente como consequência a proibição de produção ou valoração do mesmo, como subsequentemente procuraremos densificar. 

Ora, o meio de prova consistente na gravação de uma conversa privada sem o consentimento de uma das partes nela interveniente configura necessariamente uma prova ilícita, por a sua própria obtenção decorrer da violação de variados direitos fundamentais constitucionalmente consagrados do participante não consentidor, entre os quais se destacam o direito à palavra e o direito à intimidade da vida privada ou familiar bem como a inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada. Adicionalmente, a gravação ou utilização de gravações de palavras proferidas por outras pessoas e não dirigidas ao público é suscetível de configurar crime. A ilicitude deste meio probatório poderá não implicar, no entanto, a proibição de valoração do mesmo.

 

Da consequência da prova ilícita nos processos de família

 

No âmbito do processo-crime, a Constituição da República Portuguesa, comina com nulidade todas as provas obtidas através de abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. No entanto, inexiste qualquer referência, na Constituição ou em diplomas infraconstitucionais, à consequência da prova ilicitamente obtida em sede de processo civil, gerando dúvidas sobre a admissibilidade de valoração de tais meios probatórios nos processos de família e crianças.

Este paradigma tem gerado uma acentuada divergência a nível da doutrina e jurisprudência nacional. Parte da jurisprudência nacional entende que as gravações ilícitas não podem em caso algum ser admitidas como meio de prova, sustentando uma aplicação analógica do preceito constitucional ao processo civil com base na necessidade de dissuasão de comportamentos ilícitos, no dever do juiz de denunciar os crimes praticados em audiência e em função da consagração constitucional da proibição de valoração da prova ilícita em processo penal.

Por contraposição, outro setor jurisprudencial, seguindo aquela que é a doutrina maioritária, tem vindo a considerar que a ilicitude na obtenção de determinados meios de prova não conduz necessariamente à proibição da sua valoração, mas também não implica a garantia do seu aproveitamento, pelo que as gravações não consentidas enquanto meio probatório não serão necessariamente inadmissíveis em sede de processo civil, mas apenas poderão ser valoradas em situações específicas e excecionais, um entendimento que, configura, a nosso ver, a solução que melhor se compatibiliza com a natureza relativa dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

Sendo certo que o direito de acesso aos tribunais e de produção de prova em processo civil comporta limitações, não implicando de modo algum a admissibilidade de todo e qualquer meio de prova, também os direitos fundamentais não são direitos absolutos nem ilimitados, pois que a própria Constituição admite a sua restrição desde que tais que tais restrições visem salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais e respeitem o princípio da proporcionalidade nas suas várias vertentes.

Vejamos então em que termos as gravações não consentidas poderão vir a ser valoradas por parte dos nossos tribunais.

 

Das gravações não consentidas nos processos de família

 

Para que as gravações áudio e vídeo não consentidas se mostrem suscetíveis de valoração enquanto meios probatórios em processos de família, estas terão de constituir a única via possível e razoável de proteger outros valores que, no caso concreto, devam ser tidos por prioritários (Fonte doutrinária José Abrantes, Prova Ilícita) o que implica que implica que o meio de prova em questão tenha de preencher determinados requisitos cumulativos para que a sua valoração seja legalmente admissível.

Em primeiro lugar, as gravações em questão deverão ser aptas e adequadas a demonstrar determinada factualidade, que por sua vez se deverá mostrar relevante para a justa composição do litígio. Caso das gravações não resulte a prova da factualidade cuja demonstração se pretende, ou quando tal factualidade, mesmo que provada, se mostre irrelevante para a decisão do mérito da causa, estas deverão ser liminarmente rejeitadas.

Não basta, no entanto, que a gravação não consentida seja apta a demonstrar determinada factualidade, sendo exigida a necessidade de recurso a este meio probatório, verificando-se como que um estado de necessidade probatório. Ou seja, o recurso à prova ilícita deverá constituir o único meio possível ou razoável para efetuar a prova dos factos. Existindo outros meios de prova aptos para a demonstração dos factos em questão, como sejam por exemplo a audição de testemunhas ou das crianças, não existirá uma necessidade absoluta de recurso ao meio de prova ilícito pelo que, consequentemente, este não deverá ser valorado pelo tribunal.

Por último, deverá existir uma relação de proporcionalidade entre o meio, o sacrifício de direitos fundamentais imposto pelo recurso às gravações não consentidas, e o fim que se procura atingir através do recurso a tal meio probatório. Deste modo, o recurso às gravações não consentidas, para que se mostre admissível, deverá permitir a salvaguarda de valores e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados que, em função da sua relevância e intensidade, se devam mostrar no caso concreto prevalecentes sobre os direitos fundamentais associados à ilicitude da prova, legitimando a compressão destes últimos.

Não existe, no entanto, uma hierarquização rígida de interesses e valores que determine a prevalência apriorística de um interesse sobre outro, sendo necessário proceder à ponderação casuística dos interesses em jogo, apenas se admitindo a valoração das gravações não consentidas quando esta permita salvaguardar interesses que, no caso em concreto, prevaleçam sobre os direitos fundamentais lesados através da prova ilicitamente obtida. A descoberta da verdade material per si não é suficiente para justificar que sejam cometidos crimes ou violados direitos fundamentais individuais, podendo no entanto suceder que, no caso concreto, existam outros interesses envolvidos que, após a devida ponderação de valores, tornem legítimo o recurso à prova ilicitamente obtida.

Do exposto resulta que as gravações não consentidas não serão necessariamente admissíveis em processos de família, mesmo que estejam envolvidas crianças e ainda que sejam a única forma de demonstrar determinada factualidade, sendo pois necessário que o interesse concreto que se visa salvaguardar seja de uma intensidade tal que permita legitimar os meios a que se recorreu para efetivar a sua prova.

Pense-se por exemplo em situações de maus tratos infantis em que a gravação não consentida seja a única maneira viável de fazer prova da violência física ou psicológica sofrida pela criança, justificando-se em tal caso preterir os direitos fundamentais do interveniente não consentidor, admitindo a valoração da gravação das suas conversas privadas, de modo a salvaguardar o superior interesse da criança vitimizada.

Em suma, as gravações não consentidas configuram um meio probatório ilícito, pois que a sua obtenção implica um ato ilícito em si mesmo que compromete os direitos fundamentais do participante que não consentiu na gravação. No entanto, ainda que o direito à prova e a busca da verdade material não sejam absolutos, no processo civil, e inversamente ao que sucede no direito penal, a consequência da ilicitude do meio de prova não se encontra claramente delimitada, o que tem vindo a suscitar uma jurisprudência divergente da parte dos nossos tribunais.

Não obstante um setor da nossa jurisprudência ainda rejeitar liminarmente a valoração da prova ilícita no âmbito de processos civis, parte da doutrina e jurisprudência admitem, corretamente, a valoração excecional de meios probatórios ilicitamente obtidos quando o recurso a tais meios de prova seja a única via possível e razoável de proteger outros valores que, no caso concreto, devam ser tidos por prioritários, um entendimento mais flexível que melhor se compatibiliza com a natureza relativa dos direitos fundamentais e que permite a salvaguarda de outros interesses e direitos fundamentais que se mostrem prioritários.

Ivo Morgado

Nuno Cardoso Ribeiro

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