Responsabilidades Parentais

Poder paternal - Evolução legislativa e regime actual

A matéria da regulação do poder paternal sofreu sucessivas alterações desde 1974, alterações essas que culminaram com a publicação, em 31 de Outubro, da Lei n.º 61/2008. As modificações operadas por este diploma legislativo foram muito significativas e, simbolicamente, incidiram até sobre a nomenclatura utilizada: a expressão “poder paternal” foi substituída por “responsabilidades parentais”.

Neste pequeno texto pretende-se fazer uma breve resenha histórica da legislação mais recente sobre a matéria e caracterizar sumariamente o regime actual em vigor.

I. A Reforma de 77

Na sequência da Revolução de Abril, foi publicado, em 25 de Novembro de 1977, o Decreto-Lei n.º 496/77, o qual visou adequar à nova moralidade saída da revolução de Abril uma série de institutos de Direito da Família, entre os quais o poder paternal.

Antes disso, o Código Civil de 1867 atribuía o poder paternal apenas ao pai. À mãe, por seu turno, cabia meramente auxiliar o pai neste desiderato.

O Código Civil de 1966, por seu turno, começou já a reflectir, ainda que de forma incipiente, as profundas modificações sociais que as instituições familiares vinham sofrendo por todo o mundo ocidental. Assim, o Código prescrevia que competia a ambos os pais “a guarda e regência dos filhos menores”, para logo atribuir ao pai, na sua qualidade de “chefe de família”, uma série de atribuições que lhe cabia desempenhar. Para a mãe ficavam reservadas, pois, atribuições de menor importância.

O Código não previa qualquer solução para os casos de divórcio ou separação.

Com a reforma de 77, passou a prever-se no Código Civil que, nos casos de divórcio, separação, etc, o exercício do poder paternal passava a caber ao progenitor a quem o menor fosse confiado (art. 1906º). No caso de acordo, a guarda caberia ao membro do casal escolhido por ambos; inexistindo acordo, caberia ao tribunal decidir.

A reforma, que visou dar concretização, nesta matéria, ao art. 36º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (que determina a igualdade entre marido e mulher no que respeita ao sustento e educação dos filhos), suprimiu as diferenças de papel entre um e outro em matéria de exercício de poder paternal, perdendo o pai o estatuto de “chefe de família”.

Doravante, e ao menos no plano legislativo, verificar-se-á a absoluta igualdade entre pai e mãe no que respeita ao exercício do poder paternal.

II. A Lei N.º 84/95, de 31 de Agosto

O regime saído da reforma de 77 levou a que, em caso de divórcio, a esmagadora maioria das crianças fosse entregue à guarda da mãe que, por esse motivo, passava a exercer em exclusivo o poder paternal.

Era à mãe que detinha os direitos de determinar o local de residência da criança e de coabitar com ela, de escolher o estabelecimento escolar a frequentar pela criança e tomar as decisões relativas ao seu percurso escolar, religioso, social, etc, etc. Para o pai sobravam os direitos de manter relações pessoais com o filho (direito de visita) e de vigiar o respectivo percurso escolar.

Este regime suscitou fortes críticas de muitos e muitos pais – homens, leia-se – privados do convívio com os seus filhos e alheios às decisões mais relevantes sobre a sua vida. Ao regime da guarda única assacavam-se também outro tipo de críticas, como sejam a de potenciar o conflito entre os pais, já que um só é detentor de todos os direitos sobre o menor, restando ao progenitor preterido um mero papel de observador passivo.

Assim, na sequência de uma proposta da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e da Instituição Pai-Mãe-Criança, um grupo de deputados do PS apresentou um projecto de lei que, na respectiva exposição de motivos, referia que:

“Portugal é um dos poucos países da Europa em que a lei apenas prevê um regime de guarda única, quando, à luz dos contributos provenientes de várias áreas científicas, designadamente da psicologia, se reconhece hoje a conveniência da opção pela partilha da responsabilidade paternal – desde que esta em caso de separação dos pais se mostre possível – por ser a menos traumatizante para a criança e a mais favorável para um desenvolvimento psíquico equilibrado.

Este projecto de lei previa, como regra, a adopção do regime de guarda conjunta, o qual poderia mesmo ser imposto aos pais desavindos pelo tribunal. Só nos casos em que tal regime se viesse a revelar prejudicial para o menor é que o tribunal deveria atribuir a guarda apenas a um dos progenitores.

A lei que veio a resultar das discussões parlamentares ficou, todavia, muito aquém do projecto inicial, tendo-se limitado a prever a possibilidade de adopção do regime de guarda conjunta, mas apenas em caso de acordo dos pais, não podendo o mesmo ser imposto pelo tribunal contra a vontade de um deles.

Adicionalmente, passou também a prever-se a possibilidade de, por acordo dos pais, se definirem matérias para as quais fosse necessário o acordo de ambos os progenitores.

Os nossos tribunais entendiam que, não obstante a possibilidade de fixação de um regime de guarda conjunta, tal não se devia confundir com a fixação de regimes de residência alternada, e recusava, na maior parte dos casos, a homologação de acordos que previssem a residência alternada dos menores na casa de um e outro dos progenitores.

A Lei n.º 84/95, de 31 de Agosto, ficou, pois, muito aquém das expectativas dos seus proponentes, mas não deixou de representar um passo muito significativo em matéria de exercício conjunto do poder paternal.

III. A LEI 59/99, de 30 de Junho

Em 18 de Março de 1999 um grupo de deputados do Partido Socialista apresentou um  Projecto de Lei (nº 644/VII, publicado no D.A.R., II série A, nº 46/VII/4, de 20.3.1999) que visou introduzir nova alteração em matéria de exercício do poder paternal após o divórcio ou separação, e que culminou na publicação da Lei n.º 59/99, de 30 de Junho.

A lei veio conferir nova redação ao art. 1906º do Código Civil, passando agora  o exercício conjunto das responsabilidades parentais a figurar em primeiro lugar, logo no número 1 deste preceito, sendo remetido para o número 2 o regime de guarda única. Os números 1 e 2 do art. 1906º passaram a ter a seguinte redacção:

“1. Desde que obtido o acordo dos pais, o poder paternal é exercido em comum por ambos, decidindo as questões relativas à vida do filho em condições idênticas às que vigoram para tal efeito na constância do matrimónio.

2. Na ausência de acordo dos pais, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que o poder paternal seja exercido pelo progenitor a quem o filho for confiado”.

A lei continuou, pois, a exigir o acordo de ambos os progenitores para o estabelecimento da guarda conjunta. Por outro lado, a fundamentação exigida ao tribunal basta-se com uma mera referência à ausência de acordo, pelo que esta iniciativa legislativa teve apenas o efeito simbólico – ou educativo – de colocar o exercício em conjunto da guarda em primeiro lugar no texto legislativo, subalternizando, pois, ao menos em teoria, o sistema de guarda única.

IV. A LEI 61/2008, de 31 de Agosto – Regime vigente.

É de novo por iniciativa do Partido Socialista que o regime legal vigente em matéria de poder paternal sofre nova – e muito significativa – alteração em 2008.

A Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro – também conhecida por “Lei do Divórcio” – conheceu um processo legislativo atribulado, havendo mesmo sido vetada pelo Presidente da República. O veto presidencial fundamentou-se, porém, em discordâncias com o novo regime do divórcio e não nas alterações respeitantes ao exercício do poder paternal.

Uma das alterações mais significativas emergentes da Lei é a substituição da expressão poder paternal pela de responsabilidades parentais, deixando-se assim cair um termo que é utilizado há milénios na legislação civil. O enfoque deixa de estar centrado no adulto – que é detentor do poder – para passar a ser centralizado na  criança e nos direitos desta que urge acautelar.

A segunda alteração mais significativa passa pela consagração, como regra, do exercício conjunto das responsabilidades parentais. Na exposição de motivos subscrita pelos deputados proponentes da lei, consignou-se, a este respeito, que:

“(…) a imposição do exercício conjunto das responsabilidades parentais para as decisões de grande relevância da vida dos filhos decorre (…) do respeito pelo princípio do interesse da criança. Também aqui se acompanha a experiência da jurisprudência e a legislação vigente em países que, por se terem há mais tempo confrontado com o aumento do divórcio, mudaram o regime de exercício das responsabilidades parentais da guarda única para a guarda conjunta. Isso aconteceu por terem sido verificados os efeitos perversos da guarda única, nomeadamente pela tendência de maior afastamento dos pais homens do exercício das suas responsabilidades parentais e correlativa fragilização do relacionamento afectivo com os seus filhos” (Exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 509/X – DAR I Série N.º72/X/3 de 17/04/2008).

Após o veto presidencial a lei voltou a ser votada na Assembleia e, com ligeiras alterações, veio a ser publicada em 31 de Outubro, tendo entrado em vigor no dia 30 de Novembro de 2008.

O art. 1906º do Código Civil, que regula o exercício do poder paternal em caso de divórcio ou separação, passou então a ter a seguinte redação:

  1. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
  2. Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores.
  3. O exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente do filho cabe ao progenitor com quem ele reside habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente; porém, este último, ao exercer as suas responsabilidades, não deve contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente.
  4. O progenitor a quem cabe o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente pode exercê-las por si ou delegar o seu exercício.
  5. O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro.
  6. Ao progenitor que não exerça, no todo ou em parte, as responsabilidades parentais assiste o direito de ser informado sobre o modo do seu exercício, designadamente sobre a educação e as condições de vida do filho.
  7. O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.”

Consagra-se agora, pois, o princípio geral de exercício conjunto das responsabilidades parentais no que respeita aos actos de particular importância para a vida da criança. Esta regra é imperativa e só poderá ser afastada, diz o número 2, quando o tribunal, em decisão fundamentada, entenda que tal solução é contrária aos interesses do menor.

Já no que concerne aos actos da vida corrente do menor, o poder parental será exercido pelo progenitor com quem reside habitualmente.

Saber o que são, em concreto, “actos de particular importância” e “actos da vida corrente” da criança, será função da doutrina e dos nossos tribunais que sedimentarão, a seu tempo, jurisprudência sobre o assunto. Na exposição de motivos da lei, os deputados proponentes, fizeram consignar o seguinte: “(…) espera-se que, ao menos no princípio da aplicação do regime, os assuntos relevantes se resuma a questões existenciais graves e raras, quer pertençam ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças”.

O exercício conjunto das responsabilidades parentais não deve ser confundido com o conceito de residência alternada. Com efeito, este regime não implica que as crianças residam alternadamente com ambos progenitores, tal como muitas vezes se pensa. O exercício conjunto das responsabilidades parentais diz apenas respeito à tomada das decisões relativas às questões mais relevantes da vida dos menores, e não à coabitação com qualquer deles.

O progenitor que não resida com a criança deverá ver consagradas, não obstante, amplas oportunidades de convívio com a mesma, conferindo-lhe expressamente o art. 1906º, n. º 7, a lei o direito a “manter uma relação de grande proximidade” com o filho.

V. Conclusão

Enfim, a lei 61/2008, de 31 de Outubro, nesta matéria de poder paternal, foi norteada por um fim confessado que nos parece nobre, nomeadamente o de fazer participar ambos os pais na vida dos filhos, mesmo em caso de divórcio ou separação. Pretendeu, pois, obviar-se às situações em que o progenitor a quem a guarda é confiada exclui da vida do filho o outro membro do casal, provocando situações de grande afastamento relacional entre o outro progenitor – em geral o pai homem – e o seu filho.

Ora, a cooperação entre os pais é – e sempre foi – a prática de inúmeras famílias divorciadas ou separadas que, não obstante, conseguem manter relações de cordialidade e de cooperação no que respeita à criação dos filhos e não consta que tenham necessitado de ajuda de qualquer lei para o efeito…

Sucede, porém, que não são apenas estas as situações que a lei é chamada a resolver, mas também – e sobretudo – as situações de famílias desavindas em que os membros do ex-casal mantêm relações de conflito. Ora, nestes casos, a realidade mostra-nos que o exercício conjunto das responsabilidades parentais não é, por vezes, exequível. Nestes casos, o exercício conjunto constitui um elemento potenciador do conflito, já que implica contactos e consensos entre pais e mães que, pura e simplesmente, não se conseguem entender. Outras vezes este poder-dever é utilizado por um membro do ex-casal, não em benefício da criança, mas sim como uma arma de arremesso para atingir o seu ex-companheiro, negando e contrariando as pretensões do outro, e propiciando, pois, contínuas e nefastas interferências na vida deste último.

Do mesmo modo, a fixação de regimes de visitas muito generosos, propiciando amplas oportunidades de contacto entre os membros do ex-casal, poderá também ser potenciadora de situações de conflito e até de episódios de violência.

O mesmo é dizer que, em muitos casos, esta “cooperação” entre os pais que a lei pretendeu instituir como regra constituirá uma fonte de conflitos que se irão arrastar pelos tribunais. Caberá a estes, pois, separar “o trigo do joio” e impedir que os progenitores utilizem os direitos legalmente consagrados, como seja o de manter uma relação de grande proximidade com o filho, para fins diversos daqueles que presidiram à iniciativa legislativa, nomeadamente como uma arma mais na “luta” contra o seu ex-companheiro.

É por todos estes motivos que muitas organizações de defesa da mulher expressaram sérias reservas relativamente ao  regime legal saído da Lei 61/2008. Na verdade, e se é de saudar a intenção legislativa de consagrar, como regra, o princípio do exercício conjunto das responsabilidades parentais e o direito de ambos os progenitores a manterem uma relação de grande proximidade com o filho, deverá reconhecer-se, por outro lado, que os mecanismos legais se poderão prestar a uma utilização indevida. Este até poderia ser um problema menor, não fora dar-se o caso de alguns dos nossos tribunais se mostrarem incapazes de decidir – em tempo útil, leia-se – as questões que lhes são colocadas pelas partes.

Enfim, e sem prejuízo do exposto, crê-se que, ao menos no plano dos princípios, a nova lei traduz uma iniciativa muito meritória.

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