Os tribunais portugueses não estão a aplicar como deviam a nova lei do divórcio, ignorando as inovações introduzidas no âmbito das responsabilidades parentais e dos chamados “créditos de compensação”. A conclusão está contida num estudo, que é apresentado hoje em Lisboa, e em que o Observatório Permanente de Justiça (OBJ) conclui que o potencial de transformação social da lei pode estar em risco, caso advogados e juízes não recebam com urgência formação específica.
Numa análise aos dois primeiros anos de vigência do novo regime, os autores do estudo, coordenado pelo sociólogo Boaventura Sousa Santos, identificaram “a manutenção de velhas práticas judiciárias e do não uso ou uso muito reduzido de determinadas inovações”. Na prática, advogados e juízes continuam a pautar-se pelos preceitos da anterior lei, continuando, por exemplo, a alegar violação culposa dos deveres conjugais como fundamento do divórcio, quando a nova lei fez desaparecer a noção de culpa. Do mesmo modo, continuam a aconselhar que se aguarde um ano antes de intentar a acção judicial, apesar de já ser possível acionar o divórcio sem consentimento do outro cônjuge logo e sempre que ocorram “quaisquer factos que mostrem a rutura definitiva do casamento”.
Outro dado que resulta claro da leitura do estudo é que a nova lei não fez disparar o número de divórcios, ao contrário do que anteciparam os seus detratores. Em 2009, a taxa bruta de divorcialidade estabilizou nos 2,5 divórcios por mil habitantes. Em termos absolutos, houve em 2009 mais 66 divórcios do que no ano anterior, o que traduz uma clara desaceleração do ritmo de crescimento verificado nos anos anteriores (ver infografia). “É a prova de que a discussão sobre esta lei foi muito marcada por ruído ideológico, no pior sentido”, reage Anália Torres, co-autora da lei.
Do mesmo modo, não se confirma que as novas regras do divórcio tenham deixado as mulheres mais desprotegidas, como argumentou Cavaco Silva quando vetou a lei (ver cronologia). Se não, como explicar que, em 70 por cento dos casos, a iniciativa jurídica do divórcio sem o consentimento do outro tenha partido das mulheres? “Se fosse verdade, é óbvio que não seriam elas a tomar a iniciativa”, insiste a socióloga Anália Torres.
Quanto ao facto de advogados e juízes continuarem a reger-se pela anterior lei, não se trata de má vontade. “Identificámos reações negativas (…) que, em muitos casos, refletem alguma insegurança na aplicação da lei, pelo menos nesta fase inicial, em que ainda não existe jurisprudência de tribunais superiores que permita orientar as decisões de primeira instância”, aponta o estudo. “As pessoas não se mexem com à vontade nesta lei, porque não receberam formação prévia”, reforça esta socióloga.
Neste caso, a lacuna teve consequências agravadas pelo facto de a lei ter introduzido conceitos indeterminados, como quando estipula que ambos os progenitores têm igual poder de decisão nos “actos de particular importância” na vida dos filhos menores. Para Anália, os conceitos devem permanecer indeterminados, sob pena de surgirem sempre “casos novos que não se encaixam nas especificações da lei”. Mais a mais, “os juízes não existem para fazer leituras óticas dos documentos”.
O escasso recurso à mediação familiar, nomeadamente no campo das responsabilidades parentais, é outra das lacunas apontadas. Para colmatar a falha, o estudo propõe a criação de tribunais “multiportas”, que abarquem os diferentes mecanismos de resolução de conflitos. A curto prazo recomenda que, em especial nos grandes centros urbanos, “a mediação ocorra em dias fixos e no espaço do tribunal ou próximo”.
No tocante à lei, sobressaem várias propostas de alteração, por exemplo, para clarificar a tramitação dos processos para apuramento do crédito compensatório. “A incerteza e a confusão foram claras: nenhum operador entrevistado soube dizer, com segurança, como deveria tramitar esta matéria. E todos reclamam uma clarificação da lei”, denuncia o estudo.
Seis mudanças essenciais na vova lei
Fim da culpa
O fim do divórcio por violação culposa dos deveres conjugais foi a pedra-de-toque da lei, que passou a prever o divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, desde que assente em causas objetivas, como a alteração das faculdades mentais do outro cônjuge e a separação de facto por um ano consecutivo (eram três).
Créditos
A nova lei acabou com a presunção de renúncia aos chamados “créditos de compensação” – um mecanismo que existe desde 1977, mas que ganhou uma nova força precisamente por ter deixado de vigorar a referida presunção de renúncia. A ideia é que um dos cônjuges possa reclamar uma indemnização do outro, sempre que tenha contribuído para os encargos da vida familiar manifestamente acima do que lhe era exigível. Exemplo? A mulher que tenha deixado de trabalhar para cuidar dos filhos.
Responsabilidades
A noção de poder paternal desapareceu para dar lugar às responsabilidades parentais. Na prática, os progenitores adquiriram igual poder de decisão no tocante às questões “de particular importância” na vida do menor, independentemente de quem ficar com a guarda. Da exclusiva responsabilidade do progenitor com quem o menor ficou a residir ficaram apenas as questões relativas aos actos da vida corrente.
Incumprimento
A nova lei veio tipificar como crime o não cumprimento, repetido, do regime estabelecido na regulação das responsabilidades parentais, quer seja através da recusa, quer de atrasos significativos na entrega ou acolhimento do menor. Os atrasos no pagamento da pensão de alimentos, se reiterados, dão prisão até um ano.
Alimentos
A obrigação de pagar uma pensão de alimentos ao ex-cônjuge adquiriu carácter temporário e, mais uma vez, eliminou-se a apreciação da culpa como factor relevante para a atribuição de alimentos, em obediência à filosofia de que cada cônjuge deve prover à sua subsistência e nenhum tem o direito de reivindicar manter o mesmo padrão de vida de que gozou enquanto esteve casado.
Património
A partilha de bens passou a fazer-se segundo o regime da comunhão de adquiridos, mesmo que o regime convencionado tivesse sido a comunhão geral. Foi a forma de impedir que o divórcio se tornasse num meio para adquirir bens, para além dos adquiridos durante o casamento.
Três perguntas a Boaventura Sousa Santos
Boaventura Sousa Santos considera que os serviços de mediação devem ser incorporados nos próprios tribunais.
Os tribunais portugueses não estão preparados para aplicar a nova lei, ou esta é que está mal formulada?
A lei não está mal formulada. Tem é conceitos indeterminados, por exemplo, o da ruptura definitiva ou o da contribuição manifestamente excessiva que dá direito aos créditos compensatórios, e os nossos juristas e juízes, porque têm uma concepção muito burocrática da justiça, estão mal habituados a lidar com conceitos indeterminados. Como se sentem perdidos, querem que a lei lhes indique com precisão os critérios através dos quais eles possam decidir, mas, nesta área, é difícil submeter esses conceitos indeterminados a critérios mais definidos, temos é que ter magistrados que saibam analisar com muita atenção os casos, arriscar decisões e criar jurisprudência, ou seja, os conceitos indeterminados obrigam os tribunais a serem criadores de direito, e é assim que deve ser.
Mas, no caso dos créditos compensatórios, o próprio estudo sugere uma clarificação da lei.
Os créditos compensatórios exigem, de facto, alguma precisão na lei a respeito do modo como eles se devem processar, porque os próprios advogados têm dificuldades em perceber como intentar uma acção que é autónoma e que, em princípio, até pode decorrer num tribunal comum. Na parte procedimental, há algumas afinações que podem ser feitas, mas o problema de fundo continua a ser o da própria morosidade da justiça e os problemas da formação dos magistrados, muito habituados a interpretações processuais.
Ainda vamos a tempo de dar formação aos operadores judiciais para potenciar a aplicação da lei?
Sim. A lei alterou o paradigma e não é previsível que volte atrás; logo, faça-se o que se faz em qualquer país em que há alteração do paradigma jurídico, como se passou aqui no caso do divórcio.
Sugerem a incorporação dos serviços de mediação familiar nos próprios tribunais.
Essa é outra área em que tem que haver uma alteração legislativa que vá no sentido da incorporação dos serviços de mediação nos próprios tribunais para agilizar os processos, porque o que se passa é que a ação de divórcio é célere e, nesse sentido, a lei está muito bem conseguida. A questão é que, com o divórcio, surgem problemas que caem nos tribunais comuns, os quais, no estado atual da Justiça, são muito morosos e sujeitos a interpretações muito restritas da lei. Nesta área, e para quem está à espera de uma compensação, uma justiça atrasada é uma justiça negada e, nesse sentido, os tribunais em vez de garantes são violadores de direitos, o que tem de ser denunciado.
Setenta Por cento dos divórcos ão po mútuo consentimento
Em Portugal foram decretados em 2009 um total de 26.176 divórcios de casais residentes em território nacional. É um número que traduz um ligeiríssimo aumento de 66 divórcios relativamente a 2008, mas uma clara desaceleração do ritmo de crescimento dos últimos anos
Por detrás desta realidade, a socióloga Anália Torres admite que possam estar razões de ordem económica, com o contexto de crise a levantar dificuldades acrescidas a quem, na sequência de um divórcio, tiver de suportar sozinho os encargos de uma casa, por exemplo.
“Admito que esta estabilização do divórcio possa ter que ver com isso, não podemos ter a certeza. Mas o que resulta claro é o absurdo daquela ideia de que a nova lei iria provocar um aumento do divórcio.”
Dos divórcios decretados em 2009 – e que traduzem uma manutenção da taxa bruta de divorcialidade de 2,5 divórcios por cada mil habitantes, contra uma taxa de nupcialidade de 3,8 casamentos por mil habitantes -, a clara maioria (69,1 por cento) deu entrada nas conservatórias do registo civil, ou seja, foi por mútuo consentimento. Os restantes 30,9 por cento seguiram a via judicial, mas o Instituto Nacional de Estatística (INE) não dispõe ainda de dados que permitam aferir quantos acabaram por mútuo consentimento e quantos seguiram a via litigiosa ou a do divórcio sem consentimento de um cônjuge.
Dos números adiantados pelo INE, sabe-se apenas que, em 2006, somente 6,1 por cento dos divórcios tinham seguido a via litigiosa (7,1 em 2004).
Os casamentos que acabaram em divórcio em 2009 duraram em média 14,8 anos e a idade média no divórcio era de 41,2 anos para ambos os sexos. Cerca de 70 por cento daqueles casais tinham filhos em comum, dos quais 43,9 por cento com idades inferiores a dez anos.
Natália Faria | Público | 04-FEVEREIRO-2011