Todos os dias, 72 casais divorciam-se em Portugal. Muitos têm filhos e não são raros os casos em que as crianças são envolvidas no conflito. As sequelas podem ser graves.
A falta de um clima de segurança e de serenidade na infância deixa marcas na criança, cicatrizes na “anatomia e na fisiologia do seu sistema nervoso central, difíceis de fazer desaparecer”, assegurou o psiquiatra e psicanalista Emílio Salgueiro na conferência sobre oSuperior Interesse da Criança que decorreu na quinta e na sexta-feira, em Lisboa.
A neurociência moderna demonstra que os bebés criados por pais que não lhes proporcionaram um clima de segurança e de serenidade “mostram um atraso na maturação cerebral”, contribuindo para que neles se instale “uma situação de stress permanente, lesando o cérebro e impregnando as vivências da criança de insegurança, aflição e desorganização”, alertou Emílio Salgueiro, a propósito da discussão acerca do interesse da criança nos processos de separação dos pais.
SAP. Desde a década de 80 que esta sigla passou a ser usada nos tribunais e em relatórios médicos no âmbito dos processos de regulação das responsabilidades parentais. Introduzida pelo pedopsiquiatra americano Richard Gardner, SAP corresponde à “síndrome de alienação parental” e aplica-se a situações em que as crianças, filhas de pais separados, se recusam a estar com um dos pais, do qual por vezes têm uma imagem distorcida, devido à manipulação do outro. Habitualmente, o termo é utilizado para designar a manipulação da criança pela mãe para a afastar do pai.
A opinião acerca da existência desta síndrome não é unânime e tem sido particularmente contestada por grupos ligados à defesa dos direitos das mulheres e contra a violência doméstica, que consideram que, em muitos casos, as crianças não podem conviver com os pais por suspeitas de que eles são os agressores das crianças, nomeadamente em situações de abuso sexual.
Este entendimento é rejeitado pelos defensores da igualdade de direitos quanto à tutela dos filhos, entre os quais se contam muitos homens que se dizem discriminados pelos tribunais, que os impedem de exercer o direito da guarda dos filhos.
O assunto esteve nos últimos dois dias em debate, em Lisboa, na conferência internacional intitulada O Superior Interesse da Criança e o Mito da Síndrome de Alienação Parentalorganizada pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, pelo Instituto de Apoio à Criança, pela Universidade Católica Portuguesa e pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Os dados mais recentes do INE revelam que há quase 26.500 divórcios por ano, em Portugal, uma média de 72 por dia. Em grande parte dos casos, as separações são acompanhadas de conflitos cujos efeitos afectam, sobretudo, os filhos.
E foi esta questão que o psiquiatra Emílio Salgueiro aprofundou na sua comunicação. “O superior interesse das crianças seria o de que não tivesse que haver regulação das responsabilidades parentais”, começou por dizer. Notou que um dos direitos naturais da criança é o de “terem um pai e uma mãe que as desejem e que as amem (…)”, um amor a que chama de “encantamento fundador”.
Quando se chega a um processo de regulação das responsabilidades parentais, “já houve muita coisa que correu mal ou mesmo muito mal, entre os pais, um com o outro, entre os pais e a criança, entre este trio fundamental e a sociedade”, salienta. Esse direito nuclear de toda a criança “foi ficando pelo caminho, mais ou menos maltratado, mais ou menos danificado”.
As “vicissitudes, positivas e negativas, que vão ocorrendo no casal acompanham-se de vicissitudes paralelas na relação com o filho”, observa o psiquiatra, explicando que a neurociência moderna demonstra que os bebés que cresceram num clima sem segurança e serenidade “mostram um atraso na maturação cerebral, em especial dos lobos pré-frontais, com alterações neuronais e diminuição da taxa de serotonina, neurotransmissor fundamental, reequilibrador dos estados de ânimo e de desânimo, propulsor da força de viver e do prazer em estar vivo”. E, sem a base de “apoio seguro”, instala-se “uma situação destress permanente, lesando o cérebro”.Salgueiro identifica três grandes momentos traumáticos que afectam a criança no seu desenvolvimento emocional: o “clima parental e social precoce negativo”, a separação dos pais e as decisões que acompanham a separação, como a “gestão das guardas parentais”. O acumular destas várias angústias pode ter um efeito “catastrófico”, a menos que “surja uma intervenção exterior revigorante” e “portadora de esperança”. E é nesse sentido que Emílio Salgueiro fala de um “tutor de resiliência”, alguém que se ligue à criança “por um laço afectivo forte”, restaurando um “reencantamento perdido”. Na perspectiva deste psicanalista, “a sociedade deveria sentir-se e assumir-se como um gigantesco tutor de resiliência das nossas crianças e dos nossos jovens”.
Para Emílio Salgueiro, a chamada “síndrome de alienação parental” é “falada como se de uma doença se tratasse e não das consequências de um conjunto de medidas inapropriadas tomadas em relação a uma criança”. E as “guardas partilhadas muitas vezes não passam de um processo de heranças e partilhas”, nota.
(Público 11 maio 2011)