No modelo clássico da família nuclear prevalente entre nós durante todo o século XX, as mulheres cuidavam do lar e os homens obtinham os rendimentos necessários ao sustento da família, fora de casa.
Porém, sabemos que, a partir dos anos 70 do século passado, este modelo foi caindo em desuso, assistindo-se desde então à entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho.
Ora, se é verdadeiro que são cada vez menos as mulheres “domésticas”, também o é que, não obstante, continuam a ser elas a ocupar-se maioritariamente do trabalho doméstico e das tarefas inerentes aos cuidados e educação dos filhos – trabalho muitas vezes invisível e cumulado com empregos fora de casa.
Na verdade, e de acordo com um estudo da Fundação Manuel dos Santos, as mulheres continuam a despender mais tempo que os homens no trabalho do lar e criação dos filhos, prevendo-se que a plena igualdade demorará ainda cerca de 5 gerações a ser atingida…
Ora, sabendo-se que assim é, parece inequívoco que, em caso de divórcio, se poderá registar uma grave injustiça. Com efeito, a mulher poderá ter abdicado, em prol da família, de uma carreira de sucesso, contentando-se com um emprego menos exigente e que lhe permitiu cuidar da casa e dos filhos. O marido, ao invés, podendo dedicar-se integralmente ao seu trabalho, poderá ter conseguido atingir um nível profissional elevado – e rendimentos a condizer – o que só foi possível porquanto beneficiou do trabalho, invisível, dentro de portas, da sua mulher.
Além disso, o trabalho doméstico, ainda que não remunerado, tem valor económico, permitindo ao agregado familiar poupanças significativas e assim proporcionando a aquisição de bens e o enriquecimento da família, e contribuindo para o seu bem estar e manutenção. É por isso uma outra forma de contribuir para a vida familiar que deve ser juridicamente considerada e relevada como tal, mormente em casos de divórcio e separação.
Até 2008, esta mulher obteria a sua (justa) compensação por via da pensão de alimentos que o seu marido estaria obrigado a pagar se lhe fosse atribuída a culpa no processo de divórcio e que lhe permitira manter o mesmo nível de vida de que gozou durante o casamento.
Com a nova lei do divórcio (Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro), porém, tudo mudou e cada um dos cônjuges passou a estar obrigado a prover ao seu sustento depois do divórcio. Isto significa que esta mulher, que abdicou da sua carreira ou que nela não investiu tanto quanto podia, não tem direito a exigir do seu marido uma pensão de alimentos, salvo em casos muito contados (V. o nosso texto sobre a pensão de alimentos devida a ex-cônjuges).
Que solução nos oferece, então, o ordenamento jurídico saído da alteração legislativa de 2008?
O art. 1676º/2 do Código Civil prevê:
“Se a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes, esse cônjuge tem direito de exigir do outro a correspondente compensação”
Assim, e à luz deste normativo, verifica-se que o cônjuge lesado poderá exigir um crédito compensatório ao seu ex-cônjuge no âmbito da partilha do casal. E deverá fazê-lo em sede do processo de inventário, no âmbito do qual são partilhados os bens comuns do casal ou em ação judicial autónoma, quando o regime de bens for o da separação.1
É claro que o regime legal não é isento de dificuldades. Na verdade, e desde logo, a quantificação da compensação a que poderá ter direito alguém que renunciou a uma carreira profissional, total ou parcialmente, para se dedicar aos trabalhos domésticos e à criação dos filhos, não é, como se compreende, tarefa fácil.
Por outro lado, nesta equação haverá ainda que entrar em linha de conta com o correspondente “enriquecimento” do outro cônjuge, a quem o trabalho doméstico da sua ex-mulher proporcionou a possibilidade de seguir uma carreira profissional de sucesso.
O Supremo Tribunal de Justiça, em decisão que analisaremos mais adiante, no âmbito de uma rutura da união de facto fixou a compensação a pagar por referência à fórmula:
2/3 do Valor do salário mínimo nacional × 12 × Tempo do casamento
A redução de um 1/3 relativamente ao valor do salário mínimo nacional justifica-se, na doutrina do Supremo, por se considerar que ao valor da compensação do cônjuge empobrecido se devem retirar os valores alocados, na constância do casamento, à satisfação das suas necessidades e despesas pessoais.
Concluímos, assim, que, em caso de divórcio, poderá haver lugar ao pagamento de uma compensação de um ex-cônjuge ao seu ex-cônjuge por ter prestado uma contribuição para o bem-estar da família maior do que a que lhe caberia, mesmo nos casos em que tal contribuição consiste na prestação de trabalho doméstico e cuidados com os filhos.
A união de facto e a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021
Ao contrário das pessoas casadas, os membros da união de facto optaram por viver como casal, partilhando casa, refeições e tempo de lazer, assim como relações exclusivas de afeto e sexualidade, sem para isso celebrarem ato jurídico específico, com formalidades e publicidade, que regularize a sua situação em termos jurídicos.
Apesar disso, a lei reconhece estas uniões quando estas decorrem por um período superior a dois anos, atribuindo-lhe algumas medidas de proteção (para um enquadramento da União de Facto e descrição dos seus efeitos jurídicos, V. os nossos textos aqui e aqui).
Tais medidas são, porém, diferentes das aplicáveis aos cônjuges, não lhes sendo reconhecido, nomeadamente, um direito à compensação semelhante ao previsto no art. 1676º/2 CC nem direito a pensão de alimentos em casos de rutura (V. o nosso texto neste link).
Tal corresponde a uma opção da legislação portuguesa, porventura resultante de inércia legislativa, sendo o referido direito reconhecido noutros países.
Certo é que, tal como ocorre durante o casamento, poderão ocorrer desequilíbrios na prestação de trabalho doméstico que reclamem a compensação de um dos elementos da União, em casos de rutura – e que atingem graus de injustiça clamorosos, particularmente em casos de Uniões de longa duração em que um dos seus elementos, tendo abdicado da sua carreira, se vê desprovido de meios de subsistência, apesar de todo o trabalho por ele dedicado à vida comum, do seu contributo para o aumento do padrão de vida do casal e, bem assim, para o enriquecimento do seu companheiro.
Apesar desta similaridade de circunstâncias, recusa-se a aplicação analógica do normativo previsto no art. 1676º/2 do Código Civil, a que nos referimos em cima, considerando-se que fazê-lo equivaleria a contrariar a vontade dos membros da União, que, tendo decidido não casar quando tinham essa possibilidade, parecem não ter pretendido os efeitos jurídicos específicos do casamento.
Como tal, questiona-se a possibilidade de obter a referida compensação através do regime legal comum, especificamente através do regime do enriquecimento sem causa, previsto para casos em que determinada pessoa, sem causa justificativa, enriqueceu injustificadamente à custa do empobrecimento de outra.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vinha consecutivamente a decidir negativamente a questão, considerando que não havia lugar à compensação pelo trabalho doméstico desproporcionadamente efetuado no âmbito de União de Facto, à luz do regime comum.
Como argumento sustentava-se que tal contribuição para a economia comum não correspondia ao cumprimento de um dever jurídico, judicialmente exigível, mas a sim a uma prestação espontânea decorrente dos deveres morais e sociais de entreajuda e solidariedade entre os unidos de facto, durante a vida em comum, juridicamente designada por “obrigação natural”.
Porém, recentemente o Supremo Tribunal de Justiça considerou que, sendo o raciocínio acima exposto válido quando as tarefas domésticas são repartidas de igual forma pelo casal, não poderá valer quando as mesmas sejam desempenhas exclusivamente ou sobretudo por um dos elementos da União (para consultar o texto integral da decisão, clique aqui). É que, verificando-se um manifesto desequilíbrio na repartição de tarefas, não se poderá considerar que tal prestação desequilibrada corresponde ao cumprimento de uma obrigação natural.
Como se referiu, ao conceito de obrigação natural está ínsita uma ideia de justiça, temporal e espacialmente circunscrita e que visa a harmonização de interesses. Tal ideia tem como um dos seus critérios cimeiros a igualdade, sendo, como tal, incompatível com “a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa (…) por apenas um dos membros da união de facto”.
Este entendimento surge ainda reforçado pelo contexto histórico atual, especialmente preocupado com a igualdade de género, onde se assiste, consequentemente, à crescente normalização da realização de tarefas domésticas por membros masculinos do casal. A ideia de justiça hoje em vigor reclama, em suma, uma divisão de tarefas tão igualitária quanto possível, desimpedindo a mulher para que possa prosseguir a sua realização pessoal e profissional.
Como tal, a realização de tarefas domésticas exclusivamente ou sobretudo por um dos elementos da União de Facto poderá corresponder a um enriquecimento injustificado de um, à custa do empobrecimento injustificado de outro, que deverá ser compensado uma vez dissolvida a união de facto.
Para calcular o montante da indemnização o Supremo Tribunal recorreu à fórmula a que em cima nos referimos e que se baseia, como se viu, no salário mínimo. Apesar de, na prática, se verificar, por esta via, uma aproximação entre o regime do casamento e da União de Facto (sobre esta questão, V. o artigo de opinião de Nuno Cardoso Ribeiro disponível aqui), a solução preconizada resulta das disposições gerais quanto a matérias obrigacionais e reais, permitindo a justa harmonização dos interesses de ambos os elementos da União cessante, que, de outra forma, não se realizaria.
Nuno Cardoso Ribeiro
Catarina Martins Caeiro